Rancho Folclórico e Etnográfico de Santa Maria de Cárquere
O Milagre de Cárquere

 
O altar do «milagre de Cárquere»


CRÓNICAS
DOS SETE PRIMEIROS

REIS DE PORTUGAL
PRIMEIRO VOLUME
CAPÍTULO TERCEIRO


Como D. Egas Moniz (1) criou D. Afonso [Henriques],  filho do Conde D. Anrique, e como [o mesmo D. Afonso Henriques] foi são per milagre de Nossa Senhora d' aleijão com que nasceu.

/f. 5/

DEPOIS que o Conde D. Anrique / assi / (2) foi casado com D.ª Tareja, (3) filha del-Rei / D. Afonso [VI] / (4) de Castela, como dito é, vindo ela a emprenhar, D. Egas Moniz, (5) mui esforçado e nobre fidalgo, grande seu privado, que com ele viera de sua terra, a quem tinha feita muita mercê, chegou a ele, (6) pedindo-lhe que qualquer filho ou filha que a Rainha parisse, lho quisesse dar pera o ele criar. (7) E o Conde lho outorgou.

E veio a Rainha a parir um filho (8) grande e fermoso, que não podia mais / ser em / (9) uma criatura, salvo que nasceu com as pernas tão encolheitas que, ao parecer de mestres e de todos, julgarom que nunca poderia ser são delas. E nasceu no ano do nascimento de Nosso Senhor Jesu Cristo de M e XC e IV anos. (10)

Tanto que D. Egas Moniz soube que a Rainha parira, cavalgou depressa (11) e veio-se a Guimarães, onde o Conde D. Anrique estava, e pedindo-lhe, por mercê, que lhe desse o filho que lhe nascera, pera o haver de criar, como lhe tinha prometido. E o Conde lhe respondeu que não quisesse tomar tal cargo, que o filho que lhe Deus dera nascera, por seus pecados, tolheito de maneira (12) que todos tinham que nunca guareceria nem seria pera [ser um] homem. E D. Egas Moniz, quando esto ouviu, pesou-lhe muito (13) e disse: —«Senhor, antes cuido eu que por meus pecados aconteceu isto. Mas, pois a Deus aprouve ser tal (14) minha ventura, dai-me, todavia, vosso filho, (15) quijando quer que seja». E o Conde, posto que tivesse grande pejo, pelo bem que a D. Egas Moniz queria, de o encarregar em semelhantes crianças, (16) por causa d' aleigão da criança, contudo lha deu, por comprir [o que lhe tinha prometido]. (17) (18)

E quando D. Egas vio a criança tão fermosa e com tal aleijão, (19) houve mui grande dó dela. E, confiando em Deus, que lhe podia dar saúde, a tomou (20) e a fez criar, não com menos amor e cuidado (21) [do] que se fosse mui são. E, jazendo D. Egas Moniz uma noite dormindo, sendo já o menino de cinco anos, (22) lhe apareceu Nossa Senhora (23) e disse: —«D. Egas, dormes?» E ele, / a esta visão e voz, acordando, / (24) dixe: «Senhora, quem sois vós?» E ela disse: —«Eu são a Virgem Maria, que te mando (25) que vás a um tal lugar — dando-lhe logo sinais dele — e faz i cavar, e acharás (26) uma igreja que, em outro tempo, foi começada em o meu nome, e uma imagem minha. Faz correger a igreja e a imagem, feita em minha honra. E isto feito, (27) farás i vegília, poendo (28) o menino / que crias / (29) sobre o altar, e sabe que guarecerá e /f. 5 v/ será são (30) de todo; e não menos te trabalha, daí avante, de o bem criar e guardar, (31) como fazes, porque meu Filho quer, por ele, destruir muitos imigos (32) da fé».

Desaparecida / esta visão /, (33) ficou D. Egas Moniz mui consolado e alegre, / como vassalo que, com são e verdadeiro amor, amava seu senhor e suas cousas /. E, tanto que foi menhã, alevantou-se logo, e foi-se, com gente, àquele lugar que lhe fora dito. E mandou (34) aí cavar, e achou aquela igreja e imagem, poendo em obra todas as cousas que N.ª Senhora mandava. A qual e imagem, poendo em obra todas as cousas que Nossa Senhora mandava. À qual aprouve, por sua santa piadade, tanto que o menino foi posto sobre o altar, [ficou como se] nada tivera /. (35) (36)

/ Vendo /, (37) D. Egas Moniz, este tamanho prazer e milagre, deu muitos louvores a Deus e à Senhora Sua Madre, criando e guardando, daí avante, com muito amor e cuidado, (38) o menino, cujo aio foi sempre até (39) que seu pai morreu em Estorga, sendo ele já de tamanha idade que, nas guerras e todas outras fadigas, supria os cargos de seu pai.(40) E, por causa deste milagre, foi, depois, feito, em esta igreja, com muita devação, o moisteiro de Cárcare.(41) E como quer que alguns contem seu nascimento haver sido Ultramar e bautisado no rio Jordão, porém, por mais verdade, achei ser seu nascimento em a maneira que dixe.(42)
 

(C: f. 5 - G: p. 21 - P: p. 49, lin. 3)

In Crónicas dos Sete Primeiros Reis de Portugal, Edição Crítica pelo Académico de Número Carlos da Silva Tarouca, S. J., Vol. I, Academia Portuguesa da História, Lisboa, M CM LII.

A grafia das palavras foi atualizada. As palavras colocadas entre parênteses [] foram acrescentadas, a fim de facilitar a compreensão do texto.

 


C – Códice n.º 965, existente na biblioteca da Casa dos Duques do Cadaval, em Muge.

G – Edição da Crónica de D. Afonso Henriques, por Duarte Galvão, publicada pelo Conde de Castro Guimarães, Lisboa, 1918.

P – Edição da Crónica de Cinco Reis de Portugal, feita seguindo o códice n.º 886 da Biblioteca Municipal do Porto, pelo Dr. A. de Magalhães Basto. Biblioteca Histórica, Série Régia, Porto, 1945.

 


(1) Ver na História da Expansão Portuguesa no Mundo, I, Lisboa, 1937, p. 8: os fac-símiles das cartas de D. Afonso Henriques de 1139 e 1140 com as assinaturas «Ego Egas Moniz curi[a]e dapifer», e as cartas daquele nas Memórias do Mosteiro de Paço de Sousa, ed. da Academia Portuguesa da História, Lisboa, 1942, p. 159.

(2) Om. /.../: P.

(3) com a Rainha D.ª T.: G. — com sua mulher D.ª T.: P.

(4) Om. /.../: G.

(5) emprenhou ela dum filho e, sendo prenhe, D. Egas: P.

(6) chegou ao Conde: G.

(7) e disse: «Senhor, eu vos peço, por mercê, que qualquer cousa que vossa mulher, a Rainha D.ª T. parir, ora seja homem, ora seja mulher, que vós mo deis, e eu o criarei»: P.

(8) Quando veio o tempo [em] que a Rainha houve seu filho: P.

(9) ser: om. G. — ser moço de sua idade: P.

(10) era de 1132: P.

(11) cavalgou muito asinha: P.

(12) em guisa: P.

(13) mui muito: P.

(14) de tal ser: G P.

(15) dai-mo e eu o criarei: P.

(16) de semelhante criação: G.

(17) houve por embargo de lhe dar tal dom como aquele, todavia, houve-lho de dar: P.

(18) por lhe comprazer: G.

(19) tão bela creatura, e o viu assi tolheito: P.

(20) tomou o moço: P.

(21) tão bem e tão honradamente: P.

(22) Esta criação lhe fez assi, até que o moço veio a 5 anos: P.

(23) Santa Maria: P.

(24) Om. /.../: P.

(25) a Virgem, que mando: P.

(26) e disse: «Cava em aquele lugar e acharás»: P.

(27) e correge a imagem minha, que é feita em meu nome e à minha honra, e como isto for feito: P.

(28) e porão: P.

(29) Om. /.../: P.

(30) será são e guarido: P.

(31) Faze-o bem guardar: P.

(32) os imigos: P.

(33) Om. /.../: C P.

(34) e mandou por homens: G.

(35) Om. /.../: P.

(36) e pôs o seu [moço,] criado [pelos seus cuidados,] sobre o altar, e prouve à Virgem Maria e ao seu bento Filho, que o moço foi guarido e são: P.

(37) Om. /.../: P.

(38) com muito maior cuidado: G.

(39) o guardou sempre mui bem e foi sempre seu aio, té: P.

(40) que mandava já como ele nas guerras: P.

(41) Cárquere: G. — Cárcare: P.

(42) No cód. Cadaval 953, (Crónica G, do fim do séc XVI,) encontramos, a seguir à palavra «Cárquere», o esclarecimento: «que é em cima do Douro, na Comarca da Beira». No mesmo cód. 953, depois das palavras «que dixe», «Porque D. Af.º Jordão, em que alguns se enleiam, era primo co-irmão deste, filho de D. Reimão de S. Gil e de D.ª Elvira, irmã de D.ª Tareja, ambas filhas del-Rei D. Afonso». —Conf. História de Portugal, III. pp. 63 e segs.


Veja a digitalização do manuscrito do milagre de Cárquere na Crónica de D. Afonso Henriques, de Duarte Galvão:

 


 

 

 

 

 

 

 

 

 

 


 

[Início]
Free Web Hosting